23/03/2009

CONHECIMENTO CIENTÍFICO?!

Estou fazendo uma pós virtual na FGV em docência universitária e a segunda disciplina é sobre "Metodologia de pesquisa". O material propõe um debate inicial sobre o conhecimento centífico. Li e reli o material e cada vez minha inquietação aumenta... Não sabia exatamente como colocá-la, mas daí durante o almoço, Guimarães Rosa me veio em auxílio quase que espiritual. Deixo aqui então os comentários que coloquei para a moçada do curso para apreciação. Notem que não é nada elaborado, apenas fui escrevendo enquanto lia o material... Espero até o final do curso ter mais clareza nessas coisas e colocações, mas depois venho contra proceis.


Queridas e queridos,

boa tarde!

Bem, demorei para me pronunciar, pois estava tentando ler mais para colocar algumas inquietações que surgiram durante a leitura dos textos. Ainda não terminei a leitura de todo o módulo (falta a unidade 4), mas gostaria de trazer algumas coisas para refletirmos.

Minha inquietação com o material apresentado, assim como ocorreu durante a universidade, foi o fato de o conhecimento científico positivista ser visto como a metodologia mais correta e válida com relação à busca da verdade, mas creio que todas as formas de investigação são válidas. A seleção do conhecimento científico como mais válida deu-se num tempo histórico-social e portanto parte de uma escolha, de uma elite dominante à época.

“Quando, constantemente, melhoramos o conhecimento científico da origem, das funções e da evolução do universo e da vida, estamos fornecendo à humanidade uma abordagem conceitual e prática que influencia profundamente sua conduta e seus prospectos”. (UNESCO. Declaração sobre a ciência e o uso do conhecimento científico. Disponível em: . Acesso em: 24 jan. 2005.) Exatamente, estamos fornecendo UMA ABORDAGEM e não a única e mais ou menos válida.

Percebo o conhecimento científico como uma das abordagens possíveis, mas não a única que leva ao saber. Numa sociedade, num mundo plural, o saber é concretizado e feito de acordo com os diversos tipos de conhecimento (ou abordagens) que essa sociedade é capaz de produzir em determinado momento histórico.

Essa visão do domínio do conhecimento científico leva à aceitação quase que incontestável da apropriação do conhecimento por determinados grupos e, mais perigoso ainda, justifica sua mercantilização. “Há necessidade de um forte e esclarecedor debate democrático sobre o uso do conhecimento científico”. (...)“Para que a participação da ciência aumente no sentido de se construir um mundo mais justo, mais próspero e mais sustentável, há a necessidade de um compromisso, no longo prazo, de todos os interessados públicos e privados. Esse compromisso se afirmaria por meio de um maior investimento, de uma revisão das prioridades do investimento e da participação do conhecimento científico”. (UNESCO. Declaração sobre a ciência e o uso do conhecimento científico. Disponível em: . Acesso em: 24 jan. 2005.) Mais do que isso, há a necessidade de se repensar a validação do conhecimento científico e do método científico como os mais eficazes para a construção do saber coletivo. Há que se revisar esse domínio e a validação das construções sociais e individuais como saberes ou não. A partilha do conhecimento só existirá se isso for levado em conta.

“Que os sistemas de conhecimentos locais e tradicionais como as expressões dinâmicas de percepção e compreensão do mundo podem dar, e historicamente têm dado, uma contribuição valiosa para a ciência e para a tecnologia, e que há uma necessidade de preservar, proteger, pesquisar e promover essa herança cultural e o conhecimento empírico” (DECLARAÇÃO sobre a ciência e o uso do conhecimento científico: considerações. [S.l.: s.n].). Na verdade isso precisa ser repensado, é preciso haver uma mudança de valores: a ciência é quem deve contribuir com os sistemas de conhecimento locais e tradicionais.

“Da mesma forma que o conhecimento se tornou um fator crucial na produção de riqueza, sua distribuição também se tornou mais injusta. O que distingue o pobre do rico – sejam pessoas ou países – não é somente a quantidade de recursos. A questão é que os pobres são largamente excluídos da criação e dos benefícios do conhecimento científico”. (UNESCO. Declaração sobre a ciência e o uso do conhecimento científico. Disponível em: . Acesso em: 24 jan. 2005.) Certamente, como todos os aspectos da cultura humana, o conhecimento científico não poderia deixar de ser distribuído de maneira desigual pelo mundo. Relação humana é relação de poder, assim, os aspectos culturais, certamente, também o serão. No momento em que unimos isso à mercantilização acelerada dessas relações, perceberemos que quaisquer aspectos validados socialmente serão fonte de exclusão. Assim, a questão é bem mais ampla do que a colocada pelo documento. A questão é que os pobres são largamento excluídos do processo de elaboração e validação do saber. O princípio do conhecimento e da metodologia científicos são excludentes, uma vez que, por exemplo, não validam o saber popular como saber, já que não tem como base a metodologia científica. Então, para mudarmos essa situação muito bem pontuada pela ONU em seu documento, é preciso urgentemente mudar a visão que temos sobre o conhecimento científico e, portanto, seu papel na sociedade em que vivemos.

“Ainda que suas tradições sejam singulares a ciência não deve ser considerada um fenômeno histórico particular nem um agente de mudança social completamente autônomo”. (material didático, módulo 1, unidade 3, ítem 3.3 “Autonomia da ciência”). Penso que nada que é produto da sociedade é autônomo, tudo é sistêmico no mundo, inclusive nossa existência. Nesse sentido, questiono o que é colocado pelo material do curso, sobre o saber representar “o recorte dado pela ciência no conhecimento”.

Nenhum desses argumentos e reflexões invalida ou tem o objetivo de invalidar o valor do conhecimento científico para a humanidade, nossas vidas e nosso dia-a-dia. Pretendo apenas questionar o papel que possui e o lugar de destaque que lhe é conferido na validação do que é saber e de qual conhecimento deve ter o título de saber e, portanto, a necessidade de ser transmitido e debatido coletivamente.

A unidade 1 nos traz um dado valioso sobre isso. Tudo é significação e representação. Nosso cérebro representa e significa no momento em que é acionado, portanto, por meio das sensações percebe, interpreta e formula. Assim, todo o processo que dependa do cérebro humano não tem como ser objetivo. Essa objetividade pregada pelo pensamento científico/positivista não existe, pelo menos não da maneira neutra que se pretende.

É perfeito o argumento de que o conhecimento é mutável o tempo todo, de que é efêmero, já que “as verdades são raras”, a única coisa é que, embora fique claro que o próprio conhecimento científico é uma busca sujeita aos contextos históricos, culturais e ferramentais; não se questiona o método. Ou seja, sabe-se que a verdade é rara e que as teorias serão constantemente alteradas, mas presume-se que o caminho que se está percorrendo é o mais correto, eficaz e eficiente para se alcançar essa verdade rara. E isso é amplamente questionável.

Podemos ir além e questionar inclusive a existência da verdade ou das verdades, será que as verdades são raras ou simplesmente não existem, uma vez que são sempre construções e significações humanas? Será que existem sim, mas sem esse caráter místico, universal e absoluto que a ciência lhes confere? Podemos também questionar a existência do real... Mas isso já é campo daquilo que se chamou de conhecimento filosófico, não?...

Será o conhecimento científico o único fruto do pensar racional, ou a única metodologia possível para a razão?

Mais uma vez pontuo aqui que não pretendo invalidar o conhecimento e a metodologia científica, mas apenas questionar seu campo de interferência e atuação. Fico pensando que como cientistas precisamos ter a consciência de que em todo o “saber” estão todas as modalidades de conhecimento possíveis e essas são tantas quantas o número de indivíduos que existem, já que estamos todos embrenhados num mesmo sistema de códigos, decodificações, significações e culturas. Como cientistas, precisamos sempre nos responder uma questão muito primordial em minha opinião: fazemos ciência para que? Por que? Será que a ciência atualmente não tem buscado mostrar uma superioridade do homem sobre a natureza? Será que não é uma questão de ego? Por que os diversos conhecimentos não podem subsistir no mesmo plano, na mesma esfera e não com territórios tão demarcados como acontece na academia hoje?

Somos produtos e produtores. “Em 1687, o inglês Isaac Newton obteve uma fórmula descrevendo como dois corpos se atraem, com uma força proporcional ao produto de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado de sua distância. Mas ele não saberia dizer por que as duas massas se atraem. Em 1915, Albert Einstein propôs a sua teoria da gravitação, onde essa atração se deve à curvatura do espaço em torno das massas. Porém, ele também não saberia explicar por que a presença de uma massa encurva a geometria do espaço à sua volta. A ciência explica o como, não o porquê”. (GLEISER, Marcelo. O 'porquê' e o 'como'. Folha de São Paulo, São Paulo, [200-].) Podemos entender que o conhecimento científico é, portanto, uma questão de fé. Sabemos da existência de verdades ou acreditamos que elas existam e que temos um método para atingí-la? Existem valores universais ou temos uma visão etnocêntrica do universo? Max Weber, no texto “A ciência como vocação”, fala sobre a ciência ser uma questão de fé assim como a religião...

“Toda a reflexão científica, seja ela sobre a comunicação social ou qualquer outro fenômeno, é um processo histórico. Isso quer dizer que precisa ser entendida e analisada levando-se em conta o contexto social no qual se inseria quando de sua produção, um recorte sempre em tempo e espaço”. (Rafael Gioielli - O MAL-ESTAR COMO TEXTO EM CONTEXTO : A COMUNICAÇÃO E O MAL-ESTAR NA MODERNIDADE. P. 1)

Nesse sentido, será que a educação deveria se ater a lidar apenas com o conhecimento científico? Será que ela já não lida com outras formas de conhecimento, mas sem “dizer” isso?

Bem, mas isso a gente deixa para as próximas intervenções!

Enquanto estava inquieta sem ter claros os meus questionamentos com a leitura do módulo, reli esse conto do livro "Primeiras estórias" de Guimarães Rosa e achei que se encaixou como uma luva para esses questionamentos que coloquei. Segue o conto "Espelho" para auxiliar na compreesnão do que quero dizer aí em cima.


ESPELHO


Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade — um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.

Fixemo-nos no concreto. O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas — que espelho? Há-os «bons» e «maus», os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando.

Resta-lhe argumento: qualquer pessoa pode, a um tempo, ver o rosto de outra e sua reflexão no espelho. Sem sofisma, refuto-o. O experimento, por sinal ainda não realizado com rigor, careceria de valor científico, em vista das irredutíveis deformações, de ordem psicológica. Tente, aliás, fazê-lo, e terá notáveis surpresas. Além de que a simultaneidade torna-se impossível, no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo é o mágico de todas as traições... E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só a pouco e pouco é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente... E então?

Note que meus reparos limitam-se ao capítulo dos espelhos planos, de uso comum. E os demais — côncavos, convexos, parabólicos — além da possibilidade de outros, não descobertos, apenas, ainda? Um espelho, por exemplo, tetra ou quadridimensional? Parece-me não absurda, a hipótese. Matemáticos especializados, depois de mental adestramento, vieram a construir objetos a quatro dimensões, para isso utilizando pequenos cubos, de várias cores, como esses com que os meninos brincam. Duvida?
Vejo que começa a descontar um pouco de sua inicial desconfiança, quanto ao meu são juízo. Fiquemos, porém, no terra-a-terra. Rimo-nos, nas barracas de diversões, daqueles caricatos espelhos, que nos reduzem a mostrengos, esticados ou globosos. Mas, se só usamos os planos — e nas curvas de um bule tem-se sofrível espelho convexo, e numa colher brunida um côncavo razoável — deve-se a que primeiro a humanidade mirou-se nas superfícies de água quieta, lagoas, lameiros, fontes, delas aprendendo a fazer tais utensílios de metal ou cristal. Tirésias, contudo, já havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo não se visse... Sim, são para se ter medo, os espelhos.
Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis excepções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão. Sou, porém, positivo, um racional, piso o chão a pés e patas. Satisfazer-me com fantásticas não-explicações? — jamais. Que amedrontadora visão seria então aquela? Quem o Monstro?

Sendo talvez meu medo a revivescência de impressões atávicas? O espelho inspirava receio supersticioso aos primitivos, aqueles povos com a idéia de que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Via de regra, sabe-o o senhor, é a superstição fecundo ponto de partida para a pesquisa. A alma do espelho — anote-a — esplêndida metáfora. Outros, aliás, identificavam a alma com a sombra do corpo; e não lhe terá escapado a polarização: luz—treva. Não se costumava tapar os espelhos, ou voltá-los contra a parede, quando morria alguém da casa? Se, além de os utilizarem nos manejos da magia, imitativa ou simpática, videntes serviam-se deles, como da bola de cristal, vislumbrando em seu campo esboços de futuros fatos, não será porque, através dos espelhos, parece que o tempo muda de direção e de velocidade? Alongo-me, porém. Contava-lhe...
— Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois espelhos — um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício — faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era — logo descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?

Desde aí, comecei a procurar-me — ao eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou claro? O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei meses.

Sim, instrutivos. Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma inembotável paciência. Mirava-me, também, em marcados momentos — de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriam-se-me enigmas. Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente. O senhor, como os demais, não vê que seu rosto é apenas um movimento deceptivo, constante. Não vê, porque mal advertido, avezado; diria eu: ainda adormecido, sem desenvolver sequer as mais necessárias novas percepções. Não vê, como também não se vêem, no comum, os movimentos translativo e rotatório deste planeta Terra, sobre que os seus e os meus pés assentam. Se quiser, não me desculpe; mas o senhor me compreende.
Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço, a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa — a minha vera forma. Tinha de haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações.

Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio “visual” ou anulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado. Tomei o elemento animal, para começo.

Parecer-se cada um de nós com determinado bicho, relembrar seu facies, é fato. Constato-o, apenas; longe de mim puxar à bimbalha temas de metempsicose ou teorias biogenéticas. De um mestre, aliás, na ciência de Lavater, eu me inteirara no assunto. Que acha? Com caras e cabeças ovinas ou eqüinas, por exemplo, basta-lhe relancear a multidão ou atentar nos conhecidos, para reconhecer que os há, muitos. Meu sósia inferior na escala era, porém — a onça. Confirmei-me disso. E, então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente, aprender a não ver, no espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto.

Releve-me não detalhar o método ou métodos de que me vali, e que revezavam a mais buscante análise e o estrênuo vigor de abstração. Mesmo as etapas preparatórias dariam para aterrar a quem menos pronto ao árduo. Como todo homem culto, o senhor não desconhece a Ioga, e já a terá praticado, quando não seja, em suas mais elementares técnicas. E, os “exercícios espirituais” dos jesuítas, sei de filósofos e pensadores incréus que os cultivam, para aprofundarem-se na capacidade de concentração, de par com a imaginação criadora... Enfim, não lhe oculto haver recorrido a meios um tanto empíricos: gradações de luzes, lâmpadas coloridas, pomadas fosforescentes na obscuridade. Só a uma expediência me recusei, por medíocre senão falseadora, a de empregar outras substâncias no aço e estanhagem dos espelhos. Mas, era principalmente no modus de focar, na visão parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar não-vendo.. Sem ver o que, em meu rosto, não passava de reliquat bestial. Ia-o conseguindo?

Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa operação fazia reais progressos. Pouco a pouco, no campo-de-vista do espelho, minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas, quase apagadas de todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já aí, porém, decidindo-me a tratar simultaneamente as outras componentes, contingentes e ilusivas. Assim, o elemento hereditário — as parecenças com os pais e avós — que são também, nos nossos rostos, um lastro evolutivo residual. Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto. E, em seguida, o que se deveria ao contágio das paixões, manifestadas ou latentes, o que ressaltava das desordenadas pressões psicológicas transitórias. E, ainda, o que, em nossas caras, materializa idéias e sugestões de outrem; e os efêmeros interesses, sem seqüência nem antecedência, sem conexões nem fundura. Careceríamos de dias, para explicar-lhe. Prefiro que tome minhas afirmações por seu valor nominal.

À medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a modos de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como uma esponja. E escurecia-se. Por aí, não obstante os cuidados com a saúde, comecei a sofrer dores de cabeça. Será que me acovardei, sem menos? Perdoe-me, o senhor, o constrangimento, ao ter de mudar de tom para confidência tão humana, em nota de fraqueza inesperada e indigna. Lembre-se, porém, de Terêncio. Sim, os antigos; acudiu-me que representavam justamente com um espelho, rodeado de uma serpente, a Prudência, como divindade alegórica. De golpe, abandonei a investigação. Deixei, mesmo, por meses, de me olhar em qualquer espelho.
Mas, com o comum correr quotidiano, a gente se aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em longo trecho, é sempre tranqüilo. E pode ser, não menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um dia... Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, inflectindo de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era — o transparente contemplador?... Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.

Com que, então, durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes buscada, por si em mim se exercitara! Para sempre? Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles!
Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... desalmado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho — com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças — o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória.

Mas, o senhor estará achando que desvario e desoriento-me, confundindo o físico, o hiperfísico e o transfísico, fora do menor equilíbrio de raciocínio ou alinhamento lógico — na conta agora caio. Estará pensando que, do que eu disse, nada se acerta, nada prova nada. Mesmo que tudo fosse verdade, não seria mais que reles obsessão auto-sugestiva, e o despropósito de pretender que psiquismo ou alma se retratassem em espelho...
Dou-lhe razão. Há, porém, que sou um mau contador, precipitando-me às ilações antes dos fatos, e, pois: pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos bois. Releve-me. E deixe que o final de meu capítulo traga luzes ao até agora aventado, canhestra e antecipadamente.

São sucessos muito de ordem íntima, de caráter assaz esquisito. Narro-os, sob palavra, sob segredo. Pejo-me. Tenho de demais resumi-los.
Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.

São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde — por último — num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava — já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?

Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano — intersecção de planos — onde se completam de fazer as almas?

Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica — ou pelo menos parte — exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o “salto mortale”... — digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas... E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: — ”Você chegou a existir?”

Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim?

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