11/07/2007

um espelho de presente...


Adoro cartas... adoraria receber cartas, me corresponder com as pessoas... as cartas trazem presentes maravilhosos...
Esse texto aqui um amigo me passou por e-mail, mas era o tipo de presente pra ser aberto dentro dum envelope...
deliciem-se!
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Antes do texto, vale uma breve contextualizada sobre a autora:

Linda Lee A. Zihan é professora de filosofia. Não está trabalhando em nenhuma instituição atualmente. Ela também não trabalha para nenhuma ONG. É simplesmente uma pessoa que perambula pela Europa, principalmente pelos lugares pobres, com seu próprio dinheiro de aposentada. Seus textos são baseados nas conversas que ela tem com jovens (em geral pobres) nas ruas, em diversos países. Atenção: os textos de Linda não são textos fictícios para o "ensino de filosofia para jovens", no estilo de métodos desse tipo que proliferam. Os textos são baseados em conversas que realmente aconteceram com jovens desenraízados por conta de guerras e de toda a mudança geopolítica dos últimos anos. Os escritos de Linda não são traduzidos, ela aprendeu português com seu pai, brasileiro, que morreu na II Guerra Mundial em combate contra o nazismo.

Vamos ao texto:

Nietzsche Fofoca: "Sócrates - viciado, drogado e ... jogador!

Sabe o que mais a gente gosta de fazer na vida? Tanto homem quanto mulher? Fofocar! É mêu, não vá na onda de que só mulher é fofoqueira não. Homem também é. Todo mundo quer saber da vida de todo mundo. Você conhece aquela expressão "eu queria ser um mosquitinho para saber o que ele ou ela está fazendo agora"? O que é isso? Pura tesão de entrar na vida do outro, xeretear e sair sem ser visto.

Quando eu era mais jovem, e não tinha umas tetas tão caídas como agora (bem, não está de jogar fora, está?), uns amigos meus viviam tentando me espiar tomando banho. E eu, que não era burra, sempre deixava um vão na janela estragada lá de casa para eles verem (era uma casa de madeira, meio velha). Não é para me gabar não, mas um francesinho, chamado Joseph, desmaiou de tanta punheta. A mãe dele veio reclamar em casa, dizendo que eu ia matar o menino. Eu acho que eu tinha lá uns 15 anos e ele tinha uns 13, por aí. Mas tudo ficou por isso mesmo, porque minha mãe não entendia francês!

A vida é assim: a gente adora olhar em buraco de fechadura e ver alguém tirando a roupa ou mesmo não fazendo nada. A gente quer só ficar ali, espreitando. Olhamos não só pelo gosto de olhar. Aliás, nem é uma questão que querer ver pinto, bunda ou uma pussy mais peluda ou menos peluda. Olhamos porque queremos fofocar, falar do outro, encontrar um segredo e ir direto na vizinha ou no vizinho contar.

Aquele negócio da tara do Sócrates pela cicuta também virou fofoca. E aí começou a juntar gente, para falar que ele era um santo homem, que havia morrido pela filosofia e por aí foi a história. Um belo dia, um desses espíritos de porco, fofoqueiro maldoso, resolveu inverter tudo, e contar uma outra história do coitado do Sócrates. Ele misturou um monte de coisa real (vai lá saber se era real, também!) com coisa da cabeça dele, e desenhou prá todo mundo um novo Sócrates. E como fofoca pega, a dele não deixou de pegar. Veja só o que fez esse filha de uma égua.

Ele perguntou assim, ó. "Como é que um cara feio como Sócrates, podia ter tantos discípulos, jovens e gostosinhos, que iam com a cara dele?" E de fato o Sócrates não era nenhum Brad Pitt. "Como é que um cara que tinha a língua presa, e que falava meio enrolado, podia seduzir as pessoas na conversa?" É cara, Sócrates não escreveu nada! Ficou famoso e não escreveu nada, os outros escreveram o que ele falou! E ele falava mal. E ainda por cima era pobre!

Você pode ver se isso não é fofoca. O homem estava mortinho, já fazia 25 séculos, e o Nietzsche inventou de pegar no pé do cara. E inventou umas coisas loucas - mas engraçadas - sobre o Sócrates. E quando um cara inventa uma boa fofoca, ele é mostra que é um gênio. E Nietzsche foi um gênio. Filosofia, aliás, é isso, saber fazer uma boa fofoca, que possa pegar.

Ele disse que os gregos haviam ficado doentes, ou seja, eles perderam os instintos e ganharam o intelecto, a razão. Do modo que Nietzsche falava: os gregos começaram a deixar de ser helenos e se tornaram gregos somente. E então, nunca mais foram felizes. Começaram a deixar de agir instintivamente e começaram a ter de pensar nas coisas. Sabe-se lá porque isso aconteceu, ou se aconteceu mesmo, mas que a fofoca do Nietzshe pegou, ah, isso pegou!

E mais, vejam só a que ponto chega um homem como o Nietzsche, que dizem que nunca conseguiu muita coisa com mulher: ele deve ter visto aquele quadro que eu falei, aquele que tá todo mundo chorando e o Sócrates brindando com a cicuta na mão, e pensou: "mas que cara mais doidão!". E o Sócrates tomou de uma golada só, que nem cowboy. Virou! E morreu relax. E Nietzsche, que deve ter visto o quadro, quis explicar aquilo - e nada melhor que filosofia, ou seja, uma grande fofoca, para explicar aquilo.

Filósofo serve para fofocar e inventar explicação prá coisa que nem sempre tem explicação. Ele disse que o Sócrates morreu daquela maneira, com a cara com que morreu o Kevin Spacey no filme "Beleza Americana". Super tranqüilo. Então Nietzsche falou: "puta cara que queria ver o mundão terminar em barranco para ele nem ter de deitar prá morrer 3/4 que cara folgado". E completou: "esse tal de Sócrates, nunca gostou da vida" (gente que não gosta da vida, no palavreado de Nietzsche, é um negócio que a gente chama de niilista). E Nietzsche continuou: "e o povo grego, quando era heleno, sabia gozar a vida em todos os seus lados, mas depois, ficou doente, e sabem quem eles escolheram como médico? Sócrates!"

Já estou advinhando que você não tá entendendo nada! Nietzsche disse que os helenos estavam doentes e escolheram Sócrates, o mais doente dos doentes, o mais loucão, o cara que brindou a cicuta, para médico deles? Sim! Sim! Esse é que foi o truque: achar um médico de almas (o filósofo) que fosse o mais doente e tivesse arranjado um remédio para ele mesmo. Pois foi isso que Sócrates, nessa fofoca do Nietzsche, fez. Ele, Sócrates, usou da seguinte tática: se não temos mais instinto para nos guiar, e agora temos a razão, e somos obrigados a refletir e a calcular, então vamos usá-la como um divertimento que restou, vamos usá-la fazendo um tipo de jogo.

Porra, você tem de entender: não havia fliperama, não havia videogame, não tinha computador, os caras não tinham uns jogos legais. E eles eram super jogadores (afinal, não foi esses caras que inventaram o tal de Jogos Olímpicos?). Eles eram super agon, isto é, eles eram agonísticos, ou seja, jogadores-brincalhões. Tesudões em jogos, em brincadeiras. Não podendo mais se divertir naturalmente, espontaneamente com os instintos, eles passaram a se divertir com o debate de idéias de uma forma muito deles: a dialética.

Ahh! Que caralho heim? DIALÉTICA! Taí uma coisa que você pode experimentar: é um jogo. Como se joga essa porra? Vou dar o serviço. Veja.

O cara chega prá você e diz que comeu uma mina ou a mina chega e diz que tem um carinha virgem que ela vai traçar, ou já traçou. Aí, só para sacanear, você diz assim: "porra, mêu, cê é comedô, heim!" "Também, pudera, você é gostosão (ou gostosona) e bonito (ou bonita)". Toma um troço aí comigo (mas não a cicuta!) e me diz uma coisa: "o que é a beleza?" E você continua, já chamando a galera prá mesa do boteco. "Olha, aposto um caixa de Brahma da Antártica com você se você me responde essa". Aí, seu parceiro de jogo (sim, porque nesse momento o agon já começou, vocês já tão no jogo) vai falar coisa do tipo "ahhh, beleza prá mim é a Sharon Stone". Ou: "beleza, mas beleza mesmo, é o Brad Pitt peladinho". Ou ainda, "que nada, beleza tá estampada na boca da Angelina Jolie, super sexy". E mais: "beleza não tem nada a ver com o Brad Pitt, mas sim com aquele negócio meio charmosão, que vem com a idade, que é a coisa do Richard Gere". Bom, depois que todo mundo dá opinião, aí você diz, sabidão: "você se fuderam, o que todos vocês me vomitaram não é beleza mas é exemplo particular de uma coisa particular que cada um de vocês vê como atrativo". "É uma coisa bonita, mas não é a Beleza, com "B" maíúsculo". Não é a Beleza porque não pega todas as coisas belas, tanto é que em vez de gerar acordo, gera discordância. E você continua, como um Sócrates: "eu estou a fim de saber de uma coisa geral, grande, que pegue tudo, que se chama conceito - o que eu quero é o conceito de Beleza". E então, você paga nova rodada de cerveja e o jogo continua; continua a dialética, o diálogo, o agon.

Taí cara, foi isso que o Sócrates inventou e de fato foi isso que o Platão, seu discípulo mais famoso, escreveu dele. Mas o Nietzsche disse que isso tudo era uma forma de medicina, de medicamento: Sócrates teria aplicado essa brincadeira sobre si mesmo depois que ele percebeu que não era mais heleno, que não tinha mais instintos, que ele tinha uma razão hipertrofiada, e que então ele teria de se divertir com o que sobrou. Fez de um defeito de nascimento uma virtude. Nasceu não grego-heleno em uma terra de gregos-helenos. Então, tinha de arrumar isso.

A juventude se deixou levar por Sócrates porque ele ensinou os gregos a continuarem a brincar, a se divertir, agora não mais seguindo os desejos de Dionísio (um deus que gostava de coisas orgiásticas e extravagantes) em comum acordo com Apolo (um deus que gostava das coisas bem arrumadinhas, geometrizadas). Os helenos eram felizes porque tinha instintos que arrumavam neles a vontade de Apolo e de Dionísio em perfeita harmonia (é mole?). Quando perderam isso, eles se fuderam! Ou iam se fuder, se não aparecesse Sócrates. Aí então, o mais doente entre eles, Sócrates, inventou esse novo agon, a dialética.

Tá bom! Já sei que você está dizendo que se alguém consegue ser uma pessoa que nem precisa refletir, raciocinar para viver a harmonia entre a extravagância e a retidão (a vontade de Dionísio e a vontade de Apolo), ficar só com a dialética, é um paliativo, não uma cura. Mas é isso mesmo que Nietzsche disse: médico não cura, médico dá remédio, dá paliativo. Só médico burro cura o doente, pois aí ele perde o cliente.

Nietzsche inventou tudo isso de Sócrates para poder entender como é que um cara pode ficar tranqüilo na hora da morte. Se um cara fica tranqüilo na hora da morte é porque ele já estava cansado da vida. E talvez Sócrates fosse mesmo um "cansado da vida". Pois a vida, não é só o bem, ela é o bem e o mal, a vida, não é só o certo, ela é o certo e o errado. Nietzsche sempre achou Sócrates e a maioria dos filósofos uns cansados da vida, pois eles, em suas filosofias, querem eliminar o errado, o falso, o mal, o feio, e então, fazendo isso, dão mostras de que são incapazes de amar a vida, amar os fatos, aceitar a vida - sem resignação, sem esse negócio de ficar como aquela hiena do desenho da Hanna Barbera, "ó vida cruel, ó desgraça". Não, não é isso. Nietzsche queria o amor fati - a idéia de que poderíamos tomar a vida em todos os seus múltiplos aspectos. Não podendo mais fazer isso por instinto, Sócrates teria tido fama porque conseguiu uma imitação dessa felicidade usando a razão, o jogo da busca de conceitos, a tal da dialética.

Você pode não acreditar em Nietzsche. E se você ver a vida dele, vai ver que ele tentou de tudo para comer uma mulher com nome de vaca, a Lou Salomé, e dizem que não conseguiu, que ela deu prá todo mundo menos prá ele. Mas apesar disso, cê tem de concordar, ele era imaginativo nessa história que inventou para o Sócrates. Um puta de um fofoqueiro, aliás, pois essa história também pegou (olha, essa tal de vaca, a Salomé, era a Demi Moore da época, ou, no meu caso, o George Cloney; ou se quiser, a Tiazinha ou sei lá, a Feiticeira - era aquela coisa que tudo mundo queria dar uma trepada com ela, até o Freud mêu, até o Freud - puta merda, já estou falando de outra história, que nem tem nada a ver; então chega!).

O próximo dia que eu encontrar você, quero lhe mostrar o quadro de que falo tanto, aquele com o Sócrates tomando a cicuta. Não me deixe esquecer, tá?
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Imagem: Mulher no espelho (Pablo Picasso)